domingo, 26 de setembro de 2010

Onirismo


"Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo — e não entende nada." (Caio Fernando Abreu)


Eu sonhei com você.  Um sonho perturbador, como um quadro de Dalí. Confusão, supresas, metáforas, olhares complacentes que nunca ocorreram em nossas vidas. Tudo era, com o perdão da redundância, muito onírico. Mesmo com o sol na casa seis, a perfeição ainda me incomoda. Prefiro o inacabado e os vazios. Forço a minha mente para lembrar dos detalhes. Sonhei que sonhava que eu tinha um sonho? Algo clariceano sob esse aspecto.
Você me explicava, mas as palavras me soavam como entrelinhas, quase  neologismos, mas eu as entendia. Eu refutava numa língua desconhecida e, sem sentido algum, tudo fazia sentido. Você segurava a minha mão, me olhava como se dissesse :"Vai ficar tudo bem, embora haja tanto desencontro...O melhor que você pode fazer é se perder para se encontrar, porque você ainda vai morrer muito nessa vida". Não sei se foi isso o que você quis dizer, assim eu entendi. 
Havia um mar imenso,  a noite repentinamente se transformara em dia, tons de vermelho e laranja, céu de baunilha, algumas dezenas de estrelas e a lua desaparecendo na linha tênue do horizonte onde a vida ( ou sonho) termina. Sentávamos nas pedras e a sua feição se modificava, como se usasse uma máscara que, a cada hora, era magicamente trocada. Nenhum dos rostos me era familiar e, ainda assim, eu te conhecia. O tom da voz mudava, o cheiro era outro e se confundia com a brisa marítima. Sorri quando você disse que aquele momento iria se eternizar, que mesmo nas perdas, nossos caminhos se encontravam. "Seja como for, você está comigo o tempo todo." O sonho era uma pintura mítica daquela música do Renato. Havia cavalos marinhos, solidão compartilhada, havia aquele aperto no peito e aquele frio por dentro do que chamam saudade. Não sei do quê, não sei porquê. Subitamente, você me abraçava, gritava palavras incompreensíveis que se perdiam vento a fora. Do alto das pedras, nas ondas, ora revoltas, ora passivas que molhavam a areia, você desaparecia. A lua, as estrelas, o horizonte eram tragados pelo mar agitado.E o próprio mar se esvaia. Nada resistia. No nada eu estava sozinha.

No universo de silêncios que me fazia companhia, ouvi uma voz que, do vazio, me dizia: " Levanta e caminha". E eu me perguntava, numa língua impossível de ser falada: 






Eu acordava.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Ode às nuvens

Google Imagens


Eu esperava que a chuva, hora ou outra, chegasse
Regasse as plantas, molhasse o solo, me inundasse por dentro
Contradições de lágrimas e gotas ao escorrerem pelo rosto
Não sabia distingui-las, não era meu intento.

Olhava para o céu e ele me remetia ao passado.
Um par deitado a observar as nuvens e o seu movimento
Cirrus, "a mais delicada delas", você me dizia com um sorriso
E apontava para o céu, seu olhar sempre atento
Stratus, " vamos pegar algum chuvisco!"

Um misto de tristeza e solidão
À medida que o tempo mudava, eu bem me lembro
Daquela saudade imensurável de você, de uma certa melancolia.
E daquela tarde cinza de setembro.

Recorro agora à metereologia
Esperando que as tempestades tenham um fim
E, sabe-se lá, para tentar compreender
Essa Cumulonimbus aqui dentro de mim.


sábado, 18 de setembro de 2010

As tulipas


Google Imagens.


Se as tulipas eram para alguma ocasião especial? Não, não eram. Disse isso ao florista, encarando as minhas flores e me aproximando delas para sentir o aroma. Certa vez, algum florista  me confidenciou que o significado primordial da tulipa é o amor perfeito. Sorri, claro. Primeiro, com certa supresa. Depois, porque pensei na ironia dessa pequena descoberta. 'Amor perfeito...'- pensei comigo- 'só mesmo flores são capazes de trazer esse binômio para a minha vida.' Confesso que a partir de então, com o ceticismo que me é inerente, fiz desse causo um motivo para exaltar a minha solidão. Algumas pessoas me perguntavam do porquê das tulipas, sempre dispostas no mesmo vaso, sobre a mesma mesa, na exata posição. Eu dizia, esboçando um sorriso: ' Descobri que posso comprar uma dúzia de amor. Quanto à disposição, tem tudo a ver com o meu estilo metódico e com o fato de que o amor e a rotina acabam se encontrando, né? Sim, é bem verdade que elas não duram muito, que em poucos dias murcham, mas não é o amor perecível? O melhor de tudo é que posso comprar mais depois, sem desespero, sem prejuízo'. Meus amigos riam do meu descaso, mas achavam divertida minha maneira de enxergar a vida. Fizeram, inclusive, em nossas noites de cartas, apostas que sobrepuseram o nosso ritual de cervejas e notas de cinco reais. Apostaram que um dia eu iria me surpreender, me apaixonar e que seria muito mais interessante do que a "filosofia das tulipas", apelido que deram a minha brincadeira. Eu, como sempre, debochei do intento. 'Vocês vão perder e, saibam de antemão, quero mais do que cigarros dessa aposta.'

Não, eu nunca me imaginei num ritual romântico com outra pessoa. Sequer me imagino compatilhando as minhas coisas, os meus livros, a minha cozinha e, muito menos, a minha rotina, a minha vida, os meus medos, minhas manias. Tive, claro, alguns relacionamentos que foram divertidos e que duraram o suficiente para que se evitasse todo aquele drama de estar apaixonado, chorar ao ouvir certas canções, essas coisas que eu não compreendo porque não vivi. E nem sei se quero. Eu me conheço, meus pés são fincados no chão, tenho emoções, obviamente, mas não tenho aquela peça fundamental para fazer esses relacionamentos darem certo; a entrega não faz parte de mim. Confiar no outro sem saber qual vai ser, deixando o meu coração aberto, quase que com um cartaz dizendo : " Eis meu coração, faça dele o que quiser, pode até deixá-lo em pedaços, mas espere um pouco mais, deixa o pior para o final". Isso não me pertence.


Famous last words.


Uma semana havia passado. Minhas tulipas já tinham desbotado, mas, não sei porquê, demorei para comprá-las. Decidi arrumar meu quarto, separar algumas inutilidades, me entreti com algumas fotos e textos, acabei dormindo e só acordei no outro dia, com o cheiro forte das flores murchas. Passei uma água no rosto, joguei fora as tulipas, peguei minha bolsa e saí.
Ao chegar na floricultura, pela primeira vez em anos de dedicação a esse ritual, não havia tulipas. Olhei para o vendedor, pela primeira vez em anos, e reparei que ele sorria, com um ar de espanto, por eu estar tão preocupada com a falta das flores. 'Devo ir buscá-las em dois dias. Tivemos um problema na distribuição', ele disse. Eu murmurei algo como "tudo bem, volto aqui depois, obrigada" e saí, desnorteada. Como eu iria ficar sem as tulipas? Sim, é de uma banalidade ímpar essa minha preocupação, mas essa tradição estava presente nos meus dias, dava sentido à minha casa e, inclusive, me fazia companhia. Sem contar que embelezava e harmonizava, segundo o feng - shui, todo o ambiente. Senti o desequílibrio. Fechei os olhos e fui fazer outras coisas, para que o tempo passasse mais depressa. Telefonei para um amigo, contei sobre o pequeno desastre do dia, ele riu e disse: ' Você precisa é de um homem, isso sim'. Rimos.

No dia seguinte, no final da tarde, entretida nos meus trabalhos, alguém toca a campanhia. Fico receosa, uma vez que não interfonaram para anunciar de quem era a visita. Me deparo com uma coroa gigantesca de tulipas tomando quase todo o corredor. Penso que algum dos meus amigos fizeram isso para brincar comigo, ou, no mínimo, para que o meu drama das tulipas se encerrasse. Errei nas duas hipóteses. Da forma mais sutil, vejo aquele rapaz da floricultura surgindo do mar de flores que ocupavam todo o espaço. Ele sorri e diz algo assim:

"Você sabe o significado das tulipas. Obviamente sabe. E, não direi que sou o seu amor perfeito, nem que esse é um símbolo do meu encantamento. Odeio símbolos. O que eu quero dizer é que as coisas não acontecem graças ao acaso, destino, sorte, seja lá o nome que dão quando queremos muito algo e conseguimos. Acontece porque agimos. Essa é a minha atitude: eu quero você. Simples assim. Trocamos poucas palavras, talvez eu não seja a pessoa ideal pra você, eu não sei de muitas coisas. Mas eu sei o que eu senti ao ter o seu olhar no meu, pela primeira vez em tanto tempo. Percebi que era mesmo certo. Eu quero fazer parte da sua vida, de algum modo, assim como as tulipas. Eu quero durar com você. Seja  lá pelo tempo que for. Prometo que será imperfeito e imprevisível. E vai valer a pena."


Sorrimos e ele compreendeu. O equilíbrio que me faltava entrou pela porta da sala. Entrou rompendo com a rotina, bagunçando os meus pensamentos e me deixando paralisada. Chamam a isso de estado de graça. Porque eu estava, naquele momento, perdendo todas as apostas; porque a minha vida estava, de algum modo, mudando. Eu sei disso agora.
Olhando nos olhos dele eu disse, do meu jeito pouco romântico : 'Ok. Pode jogar as tulipas fora.'


terça-feira, 14 de setembro de 2010

Dos silêncios


Tantas palavras foram desperdiçadas nesse nosso embate. Escolhi com atenção cada uma que eu iria empregar para botar pra fora os desaforos, a angústia e a raiva que não era pouca.
Você também soube fazer o seu discurso, fugindo do lugar comum e tentando explicar o inexplicável. Sequer chegamos ao cerne de tudo. Você fugiu, eu hesitei, ficamos dando voltas e voltas, jogando palavras boca a fora. E guardando o fundamental por dentro. Que você queria falar e não o fez. Eu também me calei. E foram muitos os silêncios. Sobre eles me recuso a dissertar pois fiquei alienada. Sim, eu concordo, tudo ficou muito estranho. Nós, mudos, compartilhando suspiros e murmúrios. Onde você ria e eu te escutava, inverteram-se os papéis: eu falava, te interrompia e não houve sequer esboço de um sorriso. Por banalidades, coisas sólidas e fortes se estremecem. Talvez não fossem tão firmes assim. Talvez os silêncios tenham mesmo falado mais alto. E nós não soubemos ouvir.

domingo, 12 de setembro de 2010

Das coisas tão mais belas


O vento abre levemente as persianas, dando passagem ao sol do fim da tarde, sol das cinco horas, que ilumina tudo em volta, tudo lá fora, tudo aqui dentro.
Fotografar esse momento daria uma dimensão estática dessa pintura. O que eu quero é movimento. O que eu quero é sentimento.
Me perco em pensamentos, em sensações. Sinestesia. Cores, aromas, toques e paisagens em sincretismo. Que dia lindo para sonhar, penso comigo. E eu me permito. 

A acordar e dormir todos os dias agradecendo a esse ser superior pela perfeição de dias como esse.
Agradeço por não estar alienada e não ter me cegado ao ponto de não conseguir reparar nas coisas mais lindas à minha volta. Porque a beleza está muito próxima, embora os nossos olhos tenham se desacostumado a olhar.
Agradeço por pessoas que me inspiram de distintas e infinitas maneiras.
O poeta com suas rimas incertas e verdadeiras, transformando a dor em poesia.
O escritor que vive transformando sentimentos e pensamentos em palavras escritas.
A criança que sorri e te abraça daquele jeito tão puro que te faz perceber que há certas coisas que nunca se perdem e que ainda te tocam.
O músico que faz aquela melodia com a qual você se identifica ao ponto de dizer: "essa música é minha".
O pintor que conseguiu com toques da aquarela te deixar abismado e, inclusive, já te fez chorar diante de um quadro.
O amigo que está com você nos momentos mais inusitados, nos mais difíceis e nos mais leves de serem vividos.
A saudade que faz você perceber que o que foi vivido valeu.
O amor que você sentiu. Não importando se acabou, se foi verdadeiro, se valeu a pena. Só quem amou sabe como é. É muito bonito.


Agradeço por ter força para continuar vivendo um dia de cada vez, mesmo com a dureza do ofício.
Por conseguir pedir perdão e perdoar, quando são raras as pessoas que tem esse dom, percebo que tenho muita sorte comigo.
Por ter lutado. Por ter caído muitas vezes. Por ter chorado. Por ter me reerguido. Por ter me superado. E por ter crescido.

Por tocar o chão com meus próprios pés, por ter olhos capazes de observar, mãos capazes de escrever e mente sã capaz de compreender e aprender. E um coração, que mesmo se partindo muitas vezes, não está entorpecido, nem se embruteceu. Ainda é capaz de sentir. Muito e muitas vezes, quantas forem necessárias. Porque ódio é uma palavra muito forte. Amor também.

Agradeço por ter coragem de escolher, de ter a minha opinião e pela liberdade indicando as setas da rota a ser seguida. Agradeço pela vida, pelas possibilidades e por toda a beleza que permeia os nossos dias até o fim da estrada. Pelas tulipas, pelos livros, pelos raios de sol e pela surpresa e inspiração de domingos como esse: verde, capaz de nos dar  esperança de que haja mais dias assim daqui pra frente. Sim, há beleza. E tudo vai ficar bem.

sábado, 11 de setembro de 2010

A um ausente


"Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto."

(Drummmond)



Não. Me recuso a escrever sobre você. Aliás, não estou escrevendo sobre você, saiba disso.
Você é tão vaidoso, já cantou Carly Simon. Você é tão vaidoso que provavelmente não consegue se distanciar do seu ego. Você  se olha no espelho, com ar de Narciso, se afogando em seu próprio reflexo. 
Embora sabendo disso, juro que me encantei por você. Sabe-se lá o porquê... Agora que o que mal havia começado findou, realmente não compreendo as razões que me levaram a esse estado afetivo. Eu cheguei a gostar muito de você. Mais do que eu queria. Mais do que eu supunha, já que entrei nessa relação tentando deixar o coração, ao menos uma pequena porção de fora, para que pudesse contar a história. Nem preciso mencionar que o intento foi em vão.
Chorei um dia só. Fiquei ouvindo uma canção que dizia " Some things in life may change/ but some things they stay the same/ like time". E foi isso. O tempo permanece igual. Ele passa. Você passou. As lágrimas insistiram em correr por pouco tempo, sou um ser humano, com dois agravantes: mulher e escritora. Dissequei, analisei, fiquei cavando abismos, saltando dentro deles, desconstruindo os silêncios que me fizeram companhia depois que você decidiu ir. Sem avisar, sem deixar bilhetes, sem remorso. E eu fiquei só, no dia em que envelhecia e tentava justificar suas ausências. E, por falar em ausências, lembro de Pablo Neruda, que me remete a você em duas ocasiões: " Seu sorriso se espalha como borboletas", uma das últimas coisas que te mandei e que você fez questão de rejeitar. Apenas mais tarde (não tão tarde demais), compreendi que a razão para tal descaso é mulher como eu, apenas com nome e aparência distintos. "Gosto quando te calas porque estás como ausente" : preferia palavras ao invés desses silêncios que você me ofereceu propositadamente.

Silêncios seus se transformando em gritos meus. Eu, gritando um monte de verdades que não alcançam os seus ouvidos, não vale a pena, e porque estão dentro de mim. E não devem sair daqui. Olha, você sabe que errou. Eu sei que você sabe. E eu sei que você sabe que eu sei que você estava sentindo muito do que eu sentia. E, embora você tenha sido incoerente e leviano, compreendo que algumas coisas simplesmente passam e tem um significado diferente daquele que costumamos empregar. Ou daquele que queríamos. Superestimamos certas coisas. Subestimamos muitas outras. Novamente digo, não escrevo para você. Escrevo para mim. Porque eu sei que isso passa e, quem sabe um dia, vamos nos conformar pelo resultado final porque eu tentei, tentamos, pelo menos.

Não, não escrevo pra você. Li Caio Fernando, alguns dos meus gritos transcritos em palavras que, vezenquando, acho que você deveria conhecer...


“Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, [...] pelo que tentei ser correto e não foram comigo.”

“Não te tocar, não pedir um abraço, não pedir ajuda, não dizer que estou ferido, que quase morri, não dizer nada, fechar os olhos, ouvir o barulho do mar, fingindo dormir, que está tudo bem, os hematomas no plexo solar, o coração rasgado, tudo bem”

“Seria tão bom se pudéssemos nos relacionar sem que nenhum dos dois esperasse absolutamente nada, mas infelizmente nós, a gente, as pessoas, têm, temos – emoções”

Você era um ausente. Sempre foi. Não me incomodava quando essa ausência tinha associação restrita a qualquer outro sentimento, que não esse que nos envolvia. Não sei bem o que era. Nem quero saber. Não valeu.

Ratifico: não escrevo para você. Escrevo por mim. Para te exorcizar, de uma vez por todas,  aqui de dentro. Não há nada a ser compreendido, falado ou desculpado. Somente esquecido.
Quanto ao seu pedido de desculpas que foi, de longe, o mais patético que já li, digo apenas que o guarde pra si. Eu agradeço. Agradeço por tudo isso ter acontecido agora, antes que eu me envolvesse num grau em que o sofrimento se tornasse algo muito mais dolorido do que foi. Eu tenho as minhas ausências e silêncios. Eles me bastam.


P.S.: Não, T. Esse texto não é pra você.