Eu nem sei porque vim aqui. Mentira, eu sei. Mas tenho medo de falar em voz alta, tenho medo de expôr tudo isso que está secretamente guardado aqui dentro. Isso mata? Não sei, sei apenas que eu senti necessidade de vir aqui, despejar tudo o que eu ignoro, escondo, tudo o que me dá medo, tudo o que me assusta, tudo o que eu sou.
Bom, pra começo de conversa eu não sei se me sinto à vontade contando minhas coisas para um estranho. Pensando bem, acho que tenho dificuldades de me abrir com qualquer pessoa. É, talvez esse seja um dos motivos de eu estar aqui.
Por que eu fico tão calada? Costume, acho. Sempre passei mais tempo ouvindo do que falando...É um exercício de tolerância também, aprendi muito nos meus silêncios. Já me disseram que sou uma boa ouvinte, mas acho que esse não é o lugar mais adequado pra isso, né? Essa função é sua, pelo menos por enquanto...
A principal motivação que me trouxe aqui é banal. Pode rir, se quiser. Eu rio toda vez que falo isso. Não tenho conseguido chorar ultimamente. Contraditório, eu sei. Ok, muitos considerariam isso uma benção, mas não choro porque me faltam motivos, pelo contrário. Passei por muita coisa ultimamente e coisas bem duras, bem difíceis de lidar. Pra variar, fim de relacionamento. Se fosse apenas isso, talvez eu seguisse mais tranquila, mas duas semanas depois meu melhor amigo morreu. O mundo me pareceu sem sentido, nenhuma crença, fé, nenhum consolo, nada fez com que eu me acostumasse com essas perdas. Uma irremediável, outra, irreversível. Sinto um vazio grande, sinto uma dor imensa, impossível de descrever com palavras. Arrancaram um pedaço de mim e ainda não tive tempo de analisar tudo, de tentar entender, de me curar. A única coisa que persistia na minha cabeça era: eu não fiz tudo o que eu pude. Ainda persiste. Porque acabou, de um modo ou de outro, não há soluções. Guimarães Rosa disse e eu confirmo: " O trágico não vem a conta-gotas".
Eu preciso chorar. Preciso desabar mesmo, ficar sem ar, soluçar, ficar com os olhos inchados, dormir e acordar no dia seguinte disposta a continuar. Eu sei que tenho que seguir, mas ainda estou presa. Muita saudade, de um jeito tão dolorido, tão desgastante, tão triste.
Meu relacionamento acabou por escolha.Na realidade, não há escolhas quando você está sem saída. Percebi que não havia sentido em me cercear em prol de outra pessoa que não estava se empenhando em fazer dar certo. Brigas, brigas, brigas, promessas, quebra de todas elas, desculpas e uma desculpa final. Não sei pra quem é pior no fim das contas...Mas o amor não acaba de um dia pro outro e algumas vezes você se pega pensando se fez a coisa certa. Se era aquilo mesmo que você queria. Eu pensei muito sobre isso. E decidi não pensar mais. Até que o Henrique morreu. Voltei a pensar em tudo novamente. Constatei que a vida é mesmo passageira e quando você menos espera, perde as pessoas que você mais ama. E eu perdi duas num curto espaço de tempo.
Parei para pensar na minha vida também. Em tudo que eu queria fazer e não fiz, no tempo que eu perdi. Quem sou eu? Já não sei mais. Eles se foram e levaram a minha identidade.
Sobre o amor? Eu tive alguns relacionamentos, a maioria deles duradoura. Sempre tentei ser coerente, fiel, acima de tudo, a mim mesma. Então, se eu não estou satisfeita, o mais sensato é seguir só. Só que a solidão apavora. Na solidão, a gente enfrenta os nossos fantasmas, enfrenta as decepções, enfrenta tudo aquilo para o qual fechamos os olhos. Tem coisas que a gente simplesmente não quer ver.
Confesso ter ficado um pouco amarga com o passar do tempo.. Cada relação que acabava, arrebatava consigo um pedaço do meu coração. Amei muitas vezes e perdi. Faça as contas do que sobrou. Porque essa amargura é um sinal de que eu sofri, mas tentei. Não foi por ter amado de menos. Foi porque eu amei demais.
É só saudade o que eu sinto do Henrique. Ele é eterno. Adorava se exibir, era absolutamente espontâneo, criativo, lindo. Ele era exatamente o meu oposto. Confesso que sentia um pouco de inveja dele, porque ele era tudo o que eu queria ser. Eu fechada, reservada, até fria. Ele era a vida em seu ápice, em sua forma mais bonita. Ele ter simplesmente ido assim, sem se despedir, não entra na minha cabeça. Sinto calafrios por dentro, sinto vontade de sair correndo pra onde ele está. Eu só queria olhar de novo naqueles olhos cinzas. Eu só queria dizer adeus.
Por que eles saíram assim da minha vida? Um por escolha, outro por destino. E ambos me doem, talvez não da mesma forma, não me importa nada disso, só sinto essa dor latejando no meu peito. Se essa dor fosse vertida em lágrimas, quem sabe eu pudesse me acostumar. Mas dá pra se acostumar com essas perdas?
Meu coração sinaliza toda hora que existe algo ausente. Que não restou nada, além da falta.
Estou pensando nele. Nele que até tão pouco tempo atrás era parte de mim. Não me imaginava passar os dias sem uma conversa, um beijo, a presença. "Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera." Um dos sermões do Pe. Antonio Vieira, já ouviu falar? De todas as razões para o fim esperado, o tempo foi o mais cruel. Você planeja de todo o coração passar a eternidade com alguém. Faz juras de amor, faz uso recorrente das expressões "nunca" e "sempre". Tudo no amor é extremo. Nunca se quer deixar o outro porque pra sempre prevalecerá o amor. E o tempo, traquina, bagunça tudo. E nos faz constatar que, na maioria das vezes, nunca é pra sempre. Cá estou amargurada novamente, não é? Mas posso te contar um segredo? Dessa vez , dessa única vez, eu acreditei que fosse.
Acho que estou chorando, afinal. Porque os sentimentos que estão aqui dentro são fortes demais, hora ou outra romperiam esse olhar que busca algum sentido agora, agora em que não há. Eu queria que fosse verdade, que eu aproveitasse o máximo que eu pudesse da companhia deles, porque sabemos muitas coisas, mas não sabemos nada quanto ao fim. O fim esperado, o fim imprevisível. Os fins que sabe-se lá porque acabaram se encontrando na minha vida, tão repentinamente. E não há sequer preparo pra esse tipo de coisa.
Talvez você tenha razão. Fazer com que haja alguma lógica nisso tudo cabe a mim. Porque os fins, de repente, podem significar um começo. Um aprendizado, uma lembrança de que algo valeu a pena. Perder-se também é caminho, não é o que dizem? Que eu sinta saudade, que as lágrimas caiam e que eu tenha força para enxugá-las. Que eu perca, que eu me perca. E que eu saiba me encontrar.